domingo, 2 de junho de 2013

1933: as trágicas decorrências da queda da República de Weimar e do começo do Terceiro Reich devem levar argentinos e brasileiros à reflexão


(reproduzido do editorial do jornal argentino La Nacion de 27mai2013, vertido para o português com adaptações do blogue | texto original em www.lanacion.com.ar/1585784-1933)

Há 80 anos, o mundo foi testemunha silenciosa e tolerante do gradativo desaparecimento de uma república seguido, poucos meses depois, da instalação de uma ditadura, com o apoio entusiasmado da população e de suas forças vivas. A República de Weimar (sistema de governo parlamentarista democrático instaurado na Alemanha logo após a derrota na Primeira Guerra Mundial, cujos fracos alicerces permitiram a ascensão de Adolf Hitler) foi substituída por um regime totalitário, que concentrou em uma só pessoa os três poderes do Estado, eliminou os direitos individuais, controlou a Justiça, suprimiu a imprensa independente e, por fim, implementou o terrível holocausto.

Resguardando enormes distâncias, existem certos paralelismos entre aquela realidade e a Argentina e o Brasil contemporâneos, que nos obrigam a nos manter alerta.

Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler assumiu como chanceler da Alemanha, após obter 33% dos votos, nas eleições parlamentares de 1932. O presidente alemão, marechal Paul von Hindenburg, então um mandatário com idade avançada, influenciado por banqueiros, industriais, empresários e fazendeiros, ingenuamente acreditou que o novo chanceler poderia neutralizar o crescente partido nazista. E Hitler pôs em prática um plano que, em pouco tempo, culminou com a assunção do poder.

Em seu discurso de 1° de fevereiro de 1933, Hitler profetizou: ‘Deem-me quatro anos e vocês não mais reconhecerão a Alemanha’. De imediato, aconteceu de Hindenburg dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, ficando o país cinco semanas sem legislativo. Em 4 de fevereiro, Hitler obteve do presidente um decreto que proibia as críticas ao governo e suprimia as liberdades de reunião e de imprensa das organizações de esquerda, de modo a barrá-las da disputa eleitoral.

Em 27 de fevereiro ocorreu o famoso incêndio do Reichstag, o palácio do parlamento alemão, sendo responsabilizado o partido comunista. Com isto, Hitler forçou a assinatura de um decreto pra ‘a proteção do povo e do Estado’, suspendendo as liberdades individuais, de expressão, imprensa, associação, reunião e comunicações, permitindo à autoridade política realizar invasão de domicílios, detenções e confisco de bens privados.

O decreto derivado do incêndio do Palácio do Reichstag baseou-se no artigo 48 da Constituição de Weimar, que autorizava o presidente do Reich a ditar ‘decretos de emergência’ invadindo a função legislativa do parlamento. Foi a primeira ferramenta que Hitler utilizou para estabelecer uma ditadura, ainda com Hindenburg no poder. A partir desse momento, jornais foram fechados, opositores presos e foram proibidas manifestações públicas, com a instauração de um clima de perseguição política.

Nas eleições de 5 de março, o partido nazista obteve somente 44% dos votos, embora necessitasse de dois terços (67%) para a aprovação de uma lei que conferisse direitos adicionais ao governo. Com a prisão de deputados socialistas e o apoio dos nacionalistas, Hitler alcançou a maioria necessária e, em 23 de março, o Reichstag sancionou a ‘lei habilitante’, para ‘solucionar os perigos que espreitam o povo e o Estado’. A norma implicou o ‘suicídio’ do parlamento, ao delegar suas prerrogativas a Hitler, marcando o fim da República de Weimar e o começo do Terceiro Reich.

Em 13 de março, Joseph Goebbels assumiu como ministro da Propaganda. Seu primeiro discurso, no Dia do Trabalho, destinava-se a seduzir a juventude alemã. Em 24 de março, Hitler anunciou ao parlamento a necessidade de uma ‘limpeza na vida intelectual do país’, o que implicava o confisco dos meios de comunicação dos partidos socialista e comunista. Goebbles tomou o controle imediato de todas as formas de comunicação da Alemanha: livros, revistas, jornais, reuniões públicas, artes, música, cinema e rádio. Na noite de 10 de maio, os ‘camisas pardas’ e as ‘juventudes hitlerianas’ invadiram bibliotecas e livrarias de todo o país, queimando mais de 25 mil publicações.

Em 3 de abril, Hitler estabeleceu a ‘sincronização’ da imprensa. Para se poder publicar, criar publicações, dar-lhes nome, ou designar um novo diretor ou chefe de redação, era necessário obter um ‘certificado de confiabilidade política’, outorgado somente pelo Ministério da Propaganda. Em 7 de abril, a ‘cláusula ariana’ da lei de Serviço Civil obrigou a expulsão de juízes, advogados e professores universitários judeus de suas atividades.

Em 2 de maio, se ‘sincronizaram’ os sindicatos. Ironicamente, no dia seguinte à Festa do Trabalhador. O principal sindicato foi tomado e seus líderes, encarcerados. Todos os sindicatos foram obrigados a funcionar como uma única Frente de Trabalho Alemã. A ‘sincronização’ da mensagem oficial foi imposta às entrevistas coletivas: em 1° de julho, estas passaram ao controle do Ministério da Propaganda e seu Gabinete de Imprensa. Foram impostos a todos os jornalistas credenciados em Berlim os temas sobre os quais a imprensa deveria informar. Nas coletivas, sem diálogo, adestrava-se sobre o modo como se deveria transmitir o noticiário oficial.

A ‘sincronização’ da política ocorreu com a eliminação dos partidos de oposição. Em 14 de julho, foi sancionada a ‘lei dos delinquentes habituais’, que definiu a primeira leva de prisioneiros para os recém-instalados campos de concentração – como Dachau, aberto por Heinrich Himmler no mês de março.

Hitler foi o primeiro a descobrir a importância do cinema para exaltar emoções e personificar mitos. Em 22 de setembro, aprofundou-se a ‘sincronização’ da cultura e da imprensa. A lei que criou a Câmara Imperial de Cultura outorgou ao Ministério da Propaganda a prerrogativa de estabelecer grêmios de trabalhadores dessas áreas. Desse modo, formaram-se corporações únicas para os escritores, os músicos, o teatro, as artes plásticas, o cinema e a imprensa, todas sob o comando de Joseph Goebbels.

A Câmara Imperial de Imprensa foi presidida pelo célebre Max Amann, ex-oficial da SS (Schutzstaffel, em português ‘Tropa de Proteção’, organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Adolf Hitler), que ditou numerosas resoluções para controlar a imprensa e destituir todos os que se opunham a suas decisões. Amann criou um verdadeiro império na seara dos periódicos, adquirindo, confiscando e amedrontando. A casa editorial central chegou a deter 82% dos jornais e revistas alemães. Os periódicos deviam abastecer-se do material provisionado pela agência de notícias oficial.

O sistema de rádio era controlado, tanto em termos de conteúdo como economicamente, pelo Estado. À medida que avançou a guerra, Amann era quem racionava o papel para os jornais, de acordo com as conveniências políticas do nazismo. Criaram-se publicações de baixo padrão cultural, caracterizadas por sua rudeza e vulgaridade.

Em 4 de outubro de 1933, ‘sincronizou-se’ em detalhe o funcionamento dos jornais e o trabalho dos jornalistas. A lei de imprensa regulamentou o comportamento desses profissionais e do pessoal de imprensa em geral. Para exercer a profissão, devia-se ter nacionalidade alemã e ser de ‘raça ariana’. Estabeleceram-se os temas sobre os quais não se podia escrever e tornava-se obrigatória a filiação à União Imperial da Imprensa Alemã. Ficava também proibido às empresas de comunicação fixar políticas editoriais ou manifestar posições ideológicas: quem ditava estes conteúdos devia ser o Ministério da Propaganda.

Com relação à Justiça, Hitler desde sempre odiou juízes e juristas, pois o Estado de Direito implicava limitar o princípio da autoridade do führer sobre todas as normas. Já em 1933, dirigiu-se a eles advertindo que ‘o Estado não deve conhecer qualquer diferença entre a lei e a ética’ e que chegaria o dia em que essa identidade tornaria desnecessária a primeira delas. Gradualmente, levou a cabo a virtual anulação do Poder Judiciário a partir daquele ano, outorgando maiores poderes aos ‘tribunais do povo’, herdados da República de Weimar, que funcionavam com total arbitrariedade e que, em poucos anos, destituíram os juizados penais de quase toda sua esfera de atuação. Estes ‘tribunais do povo’ se disseminaram por todas as cidades alemãs e se converteram em outro órgão estatal, por meio do qual o nazismo proclamava suas conquistas e impunha o terror à população.

Tudo isso ocorreu em apenas um ano, 80 anos atrás. Durante os 12 anos seguintes, o nazismo continuou sua marcha atroz, controlando toda Europa Ocidental (salvo a Grã-Bretanha) e realizando a maior violação de direitos humanos já registrada na História. É importante que todas as nações do mundo recordem como surgiu esse regime e as terríveis consequências que a covardia ou a conveniência dos dirigentes e o temor ou o desinteresse da população podem provocar, quando se debilitam os valores coletivos e a vigência plena das instituições democráticas.

Resguardando, como dizíamos, as enormes distâncias, os argentinos – e os brasileiros – deveríamos reparar nos rasgos autoritários que, cada vez com maior frequência, manifesta o poder central, e ter consciência de que é impossível prever como pode terminar um processo que começa cerceando as liberdades e a independência dos três poderes do Estado, ao mesmo tempo em que distorce os valores essenciais da República e promove enfrentamentos dentro da sociedade.