(reproduzido do editorial do jornal argentino La
Nacion de 27mai2013, vertido para o português com adaptações do blogue | texto original em www.lanacion.com.ar/1585784-1933)
Há 80
anos, o mundo foi testemunha silenciosa e tolerante do gradativo
desaparecimento de uma república seguido, poucos meses depois, da instalação de
uma ditadura, com o apoio entusiasmado da população e de suas forças vivas. A
República de Weimar (sistema de governo parlamentarista democrático instaurado
na Alemanha logo após a derrota na Primeira Guerra Mundial, cujos fracos
alicerces permitiram a ascensão de Adolf Hitler) foi substituída por um
regime totalitário, que concentrou em uma só pessoa os três poderes do Estado,
eliminou os direitos individuais, controlou a Justiça, suprimiu a imprensa
independente e, por fim, implementou o terrível holocausto.
Resguardando
enormes distâncias, existem certos paralelismos entre aquela realidade e a Argentina e o Brasil contemporâneos, que nos obrigam a nos
manter alerta.
Em 30 de
janeiro de 1933, Adolf Hitler assumiu como chanceler da Alemanha, após obter 33%
dos votos, nas eleições parlamentares de 1932. O presidente alemão, marechal Paul
von Hindenburg, então um mandatário com idade avançada, influenciado por banqueiros,
industriais, empresários e fazendeiros, ingenuamente acreditou que o novo
chanceler poderia neutralizar o crescente partido nazista. E Hitler pôs em prática
um plano que, em pouco tempo, culminou com a assunção do poder.
Em seu
discurso de 1° de fevereiro de 1933, Hitler profetizou: ‘Deem-me quatro anos e vocês
não mais reconhecerão a Alemanha’. De imediato, aconteceu de Hindenburg dissolver
o Parlamento e convocar novas eleições, ficando o país cinco semanas sem
legislativo. Em 4 de fevereiro, Hitler obteve do presidente um decreto que
proibia as críticas ao governo e suprimia as liberdades de reunião e de
imprensa das organizações de esquerda, de modo a barrá-las da disputa
eleitoral.
Em 27 de
fevereiro ocorreu o famoso incêndio do Reichstag, o palácio do parlamento
alemão, sendo responsabilizado o partido comunista. Com isto, Hitler forçou a
assinatura de um decreto pra ‘a proteção do povo e do Estado’, suspendendo as
liberdades individuais, de expressão, imprensa, associação, reunião e comunicações,
permitindo à autoridade política realizar invasão de domicílios, detenções e
confisco de bens privados.
O decreto
derivado do incêndio do Palácio do Reichstag baseou-se no artigo 48 da
Constituição de Weimar, que autorizava o presidente do Reich a ditar ‘decretos
de emergência’ invadindo a função legislativa do parlamento. Foi a primeira ferramenta
que Hitler utilizou para estabelecer uma ditadura, ainda com Hindenburg no
poder. A partir desse momento, jornais foram fechados, opositores presos e
foram proibidas manifestações públicas, com a instauração de um clima de perseguição
política.
Nas
eleições de 5 de março, o partido nazista obteve somente 44% dos votos, embora
necessitasse de dois terços (67%) para a aprovação de uma lei que conferisse
direitos adicionais ao governo. Com a prisão de deputados socialistas e o apoio
dos nacionalistas, Hitler alcançou a maioria necessária e, em 23 de março, o
Reichstag sancionou a ‘lei habilitante’, para ‘solucionar os perigos que
espreitam o povo e o Estado’. A norma implicou o ‘suicídio’ do parlamento, ao
delegar suas prerrogativas a Hitler, marcando o fim da República de Weimar e o
começo do Terceiro Reich.
Em 13 de
março, Joseph Goebbels assumiu como ministro da Propaganda. Seu primeiro
discurso, no Dia do Trabalho, destinava-se a seduzir a juventude alemã. Em 24
de março, Hitler anunciou ao parlamento a necessidade de uma ‘limpeza na vida
intelectual do país’, o que implicava o confisco dos meios de comunicação dos
partidos socialista e comunista. Goebbles tomou o controle imediato de todas as
formas de comunicação da Alemanha: livros, revistas, jornais, reuniões
públicas, artes, música, cinema e rádio. Na noite de 10 de maio, os ‘camisas
pardas’ e as ‘juventudes hitlerianas’ invadiram bibliotecas e livrarias de todo
o país, queimando mais de 25 mil publicações.
Em 3 de
abril, Hitler estabeleceu a ‘sincronização’ da imprensa. Para se poder publicar,
criar publicações, dar-lhes nome, ou designar um novo diretor ou chefe de redação,
era necessário obter um ‘certificado de confiabilidade política’, outorgado
somente pelo Ministério da Propaganda. Em 7 de abril, a ‘cláusula ariana’ da lei
de Serviço Civil obrigou a expulsão de juízes, advogados e professores
universitários judeus de suas atividades.
Em 2 de
maio, se ‘sincronizaram’ os sindicatos. Ironicamente, no dia seguinte à Festa
do Trabalhador. O principal sindicato foi tomado e seus líderes, encarcerados.
Todos os sindicatos foram obrigados a funcionar como uma única Frente de Trabalho
Alemã. A ‘sincronização’ da mensagem oficial foi imposta às entrevistas
coletivas: em 1° de julho, estas passaram ao controle do Ministério da
Propaganda e seu Gabinete de Imprensa. Foram impostos a todos os jornalistas
credenciados em Berlim os temas sobre os quais a imprensa deveria informar. Nas
coletivas, sem diálogo, adestrava-se sobre o modo como se deveria transmitir o
noticiário oficial.
A ‘sincronização’
da política ocorreu com a eliminação dos partidos de oposição. Em 14 de julho,
foi sancionada a ‘lei dos delinquentes habituais’, que definiu a primeira leva
de prisioneiros para os recém-instalados campos de concentração – como Dachau,
aberto por Heinrich Himmler no mês de março.
Hitler foi
o primeiro a descobrir a importância do cinema para exaltar emoções e personificar
mitos. Em 22 de setembro, aprofundou-se a ‘sincronização’ da cultura e da
imprensa. A lei que criou a Câmara Imperial de Cultura outorgou ao Ministério
da Propaganda a prerrogativa de estabelecer grêmios de trabalhadores dessas
áreas. Desse modo, formaram-se corporações únicas para os escritores, os
músicos, o teatro, as artes plásticas, o cinema e a imprensa, todas sob o comando
de Joseph Goebbels.
A Câmara
Imperial de Imprensa foi presidida pelo célebre Max Amann, ex-oficial da SS (Schutzstaffel, em português ‘Tropa
de Proteção’, organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Adolf
Hitler), que ditou numerosas resoluções para controlar a imprensa e destituir
todos os que se opunham a suas decisões. Amann criou um verdadeiro império
na seara dos periódicos, adquirindo, confiscando e amedrontando. A casa editorial central
chegou a deter 82% dos jornais e revistas alemães. Os periódicos deviam
abastecer-se do material provisionado pela agência de notícias oficial.
O sistema
de rádio era controlado, tanto em termos de conteúdo como economicamente, pelo Estado.
À medida que avançou a guerra, Amann era quem racionava o papel para os jornais,
de acordo com as conveniências políticas do nazismo. Criaram-se publicações de
baixo padrão cultural, caracterizadas por sua rudeza e vulgaridade.
Em 4 de
outubro de 1933, ‘sincronizou-se’ em detalhe o funcionamento dos jornais e o trabalho
dos jornalistas. A lei de imprensa regulamentou o comportamento desses
profissionais e do pessoal de imprensa em geral. Para exercer a profissão,
devia-se ter nacionalidade alemã e ser de ‘raça ariana’. Estabeleceram-se os
temas sobre os quais não se podia escrever e tornava-se obrigatória a filiação
à União Imperial da Imprensa Alemã. Ficava também proibido às empresas de
comunicação fixar políticas editoriais ou manifestar posições ideológicas: quem
ditava estes conteúdos devia ser o Ministério da Propaganda.
Com
relação à Justiça, Hitler desde sempre odiou juízes e juristas, pois o Estado
de Direito implicava limitar o princípio da autoridade do führer sobre todas as
normas. Já em 1933, dirigiu-se a eles advertindo que ‘o Estado não deve
conhecer qualquer diferença entre a lei e a ética’ e que chegaria o dia em que
essa identidade tornaria desnecessária a primeira delas. Gradualmente, levou a
cabo a virtual anulação do Poder Judiciário a partir daquele ano, outorgando maiores
poderes aos ‘tribunais do povo’, herdados da República de Weimar, que funcionavam
com total arbitrariedade e que, em poucos anos, destituíram os juizados penais
de quase toda sua esfera de atuação. Estes ‘tribunais do povo’ se disseminaram
por todas as cidades alemãs e se converteram em outro órgão estatal, por meio do
qual o nazismo proclamava suas conquistas e impunha o terror à população.
Tudo isso
ocorreu em apenas um ano, 80 anos atrás. Durante os 12 anos seguintes, o
nazismo continuou sua marcha atroz, controlando toda Europa Ocidental (salvo a Grã-Bretanha)
e realizando a maior violação de direitos humanos já registrada na História. É
importante que todas as nações do mundo recordem como surgiu esse regime e as
terríveis consequências que a covardia ou a conveniência dos dirigentes e o
temor ou o desinteresse da população podem provocar, quando se debilitam os
valores coletivos e a vigência plena das instituições democráticas.
Resguardando,
como dizíamos, as enormes distâncias, os argentinos – e os brasileiros – deveríamos
reparar nos rasgos autoritários que, cada vez com maior frequência, manifesta o
poder central, e ter consciência de que é impossível prever como pode terminar
um processo que começa cerceando as liberdades e a independência dos três
poderes do Estado, ao mesmo tempo em que distorce os valores essenciais da
República e promove enfrentamentos dentro da sociedade.